Atualmente, segundo o presidente do Sindpecri-MG, Wilton Ribeiro de Sales, não há sequer um perito para cada município de Minas
Texto na íntegra. Por Vitor Fórneas do Jornal O Tempo
Peritos de Minas Gerais denunciam as precárias condições de trabalho, a falta de profissionais e, consequentemente, o adoecimento dos servidores por estresse acumulado durante o serviço. Atualmente, o déficit é de 211 peritos, segundo o presidente do sindicato que representa a categoria. A situação se agrava ainda mais nas cidades do interior, já que são poucos funcionários para atender várias localidades.
No total, são 565 funcionários para atender os 853 municípios de Minas Gerais, ou seja, três peritos para cada duas cidades mineiras. A Lei Orgânica da Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) prevê um quadro de 903. Os peritos não trabalham 24 horas por dia e precisam fazer uma escala que prevê folga, fins de semana, férias, entre vários contratempos, como acidentes, afastamentos deviso a questões médicas, entre outros.
O tema, inclusive, chegou a ser tratado em uma audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). A Polícia Civil não se pronunciou sobre as denúncias, apesar de ter sido procurada três vezes pela reportagem de O TEMPO, por e-mail. A primeira demanda foi enviada no dia 10 de agosto, a segunda tentativa foi feita no dia 8 de setembro e a última no dia 28 do mesmo mês.
Atualmente, segundo o presidente do Sindicato dos Peritos Criminais do Estado de Minas Gerais (Sindpecri-MG), Wilton Ribeiro de Sales, não há sequer um perito para cada município. “A falta de pessoal é, hoje, um dos nossos maiores problemas. Temos 565 peritos na ativa. Nosso déficit é de aproximadamente 211, contando que estamos com 127 na academia se preparando para ingressar na carreira. Não temos um perito para cada cidade do Estado”, afirma.
A ausência de profissionais faz com que o plantonista tenha que dar conta de tudo, ou pelo menos tente, durante o turno de trabalho. “Nos crimes contra a vida, de trânsito e outros, são dois peritos para atender Belo Horizonte e Nova Lima, na região metropolitana. Se estiver atendendo uma ocorrência em Venda Nova e tiver que ir para o Barreiro, vai ter um deslocamento longo. É por isso que, quando as ocorrências acontecem, o perito demora a chegar. Não tem jeito. É de três a quatro horas para se deslocar entre uma ocorrência e outra”.
As consequências da rotina são apresentadas por Sales. “Isso acarreta desgaste nos peritos. Temos muita gente de licença médica, principalmente no interior, por causa deste excesso de trabalho. O emocional é impactado. O perito em um plantão de 12 horas, além de fazer o trabalho no local, tem que produzir o laudo. Porém, acaba não conseguindo, ainda mais quando tem um plantão com vários homicídios, por exemplo”, aponta. Em média, cada perito faz 550 laudos por ano.
O representante da entidade destaca ainda que muitos profissionais estão prestes a se aposentar, o que fará a situação ficar ainda mais crítica. “Temos um processo de aposentadoria em que uns 80 vão sair. Porém, demora muito para renovar o quadro. Para o perito trabalhar, ele precisa ser preparado, e isso leva uns dois anos para ele estar apto a prestar o serviço e agir sozinho”.
Além da falta de efetivo, outro problema encontrado pelos peritos, segundo Sales, são as más condições dos equipamentos de trabalho. Ele conta que fora da capital mineira a medicina legal não tem lugar apropriado para realizar as necropsias e acaba tendo que realizá-la em hospitais. “Os funcionários das funerárias são quem auxiliam os peritos. Isso não pode acontecer e é totalmente ilegal, mas acaba ocorrendo pela falta do profissional auxiliar”.
Em Belo Horizonte, o presidente do Sindpecri-MG ressalta a situação do Instituto de Criminalística. “Se você visitar o espaço, vai ficar horrorizado. É um prédio antigo e que foi dividido para montar as seções. Sequer tem sistema de combate a incêndio. Todas as divisórias são de madeira, que é um produto inflamável. O teto está escorado por causa da chuva do ano passado. É desse jeito que vamos trabalhando”, desabafa.
A construção de um novo prédio está sendo prometida, mas até o momento o projeto ainda não saiu do papel, conforme detalha. “Já era para termos o nosso próprio prédio. Teve uma vez que tivemos uma verba destinada, porém a polícia enrolou tanto para enviar o projeto que perdemos. Agora, falaram que o dinheiro está garantido devido ao acordo com a Vale, mas não sabemos a quantos anda. É um cenário de incerteza”. No Projeto de Lei (PL) que tramitou na ALMG, que trata do acordo citado por Sales, é prevista a destinação de R$ 60.500.000,00 para a construção do Núcleo Integrado de Perícias da Polícia Civil de Minas Gerais.
A falta de insumos para a realização das atividades do dia a dia é outro dificultador. “Nossos profissionais são qualificados, mas encontram viaturas totalmente sucateadas para trabalhar. Faltam kits de DNA para as análises. Não adianta fazer o levantamento, colher material genético de uma vítima de estupro, para exemplificar, e não ter o kit”.
Sales relembra que anteriormente havia um convênio com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e com outras faculdades, mas “a chefia cortou”. “Tudo isso dificulta a elucidação dos crimes. A perícia também trabalha para a Justiça. Nós somos o divisor de águas que prova, de forma materializada, se a pessoa é ou não culpada por algum crime”, afirmou.
Velho problema
Os problemas estruturais citados por Sales não são de hoje. O TEMPO, em novembro de 2014, noticiou que uma falha elétrica comprometeu o armazenamento de aproximadamente 500 amostras de material genético relativas a 230 casos. Na época, o diretor do instituto disse ter pedido uma adaptação na rede elétrica do congelador, que sofreu pane.
Falhas estruturais no laboratório foram admitidas, e até mesmo foi ressaltado que o espaço deveria ter um sistema mais moderno, com um gerador ou outro aparato que evitasse esse tipo de problema. As modificações estruturais no imóvel eram solicitadas há anos.
‘É muito desgaste e estresse’
Eduardo Paolinelli é perito há oito anos e trabalha na Regional Nova Serrana, que atende seis cidades: Pitangui, Conceição do Pará, Araújos, Perdigão, Leandro Ferreira, além de Nova Serrana. Ele conta que a cada turno apenas um plantonista executa os trabalhos. “Essa é uma grande dificuldade somada à falta de recursos”, comenta.
O perito, que também é o vice-presidente do Sindpecri-MG, diz que o serviço se acumula, visto que precisam atender várias cidades. “Tem vez que o perito está numa atividade de laboratório e precisa se deslocar para fazer um exame de crime em uma cidade que fica a 150 km do ponto da perícia. Ele tem que abandonar o que fazia para dar prioridade, e, assim, o serviço acumula. Cada deslocamento é uma viagem”.
É justamente esse acúmulo de trabalho que gera o estresse nos profissionais. “A própria situação da perícia é de estresse constante, e isso se soma com a sobrecarga muito grande. Eu sou egresso do último concurso feito em 2014. Estamos trabalhando com número decrescente de profissionais, pois o quadro não é reposto”, diz.
“No interior a estrutura é muito sofrível. A minha regional é a menor do Estado, pois temos algumas que atendem até 20 cidades. É uma loucura”, complementa em tom de desabafo.
A pressão sobre os peritos provoca o adoecimento, e isso, segundo Sales, ocorreu com um profissional de Governador Valadares. “Dois peritos passaram a ser perseguidos por um delegado, que pedia para eles produzirem laudos em duas horas. Um deles ficou tão mal que teve que se afastar por 40 dias”, conta.
Diante da situação encontrada pelos peritos, Sales faz um questionamento: “A quem interessa o sucateamento da perícia?”. Na audiência pública realizada na ALMG pela Comissão do Trabalho, da Previdência e da Assistência Social, em agosto, os problemas foram apresentados.
Na oportunidade, nenhum representante do governo de Minas compareceu. “As autoridades não levam a sério o nosso trabalho. Mas uma coisa a população pode ter certeza, nós vamos lutar pela modernização da perícia. Todos os problemas que apresentamos não é chororô”, finaliza.
Análise: ‘Importância estratégica’
Lauro Freitas é especialista de segurança pública e professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), ele destaca que a situação relatada pelos peritos de Minas não é exclusiva do Estado.
“Historicamente é uma área que recebe poucos recursos porque o trabalho não é tão perceptível. O que é de se lamentar, pois a perícia tem importância estratégica. A falta de peritos compromete a elucidação de crimes. A perícia é a área mais invisível e os recursos são alocados para o que é perceptível, por isso, compra-se tantas viaturas no Brasil”, diz.
A ausência de investimentos nos trabalhos da perícia resulta em baixa elucidação dos crimes. “O perito é importante para esclarecer a autoria e apontar indícios dos crimes. A taxa de esclarecimentos de homicídios no Brasil é baixa, em torno de 37%, segundo o Instituto Sou da Paz”. O dado citado por Freitas corresponde a homicídios praticados em 2019 e consta na 5ª edição da pesquisa “Onde Mora a Impunidade? Porque o Brasil precisa de um Indicador Nacional de Esclarecimento de Homicídio”.
Com o objetivo de melhorar e equipar a perícia, há, segundo o especialista, um movimento na tentativa de criar a perícia técnica a parte da Polícia Civil. “É uma maneira para tentar ter mais autonomia, poder e recursos, pois, se a Polícia Civil já tem recebido poucos recursos, menos ainda chega para a perícia”.
Esclarecimentos não realizados em sua totalidade
A reportagem procurou a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), mas a pasta não respondeu aos questionamentos e orientou que a Polícia Civil fosse demandada. Apesar de indagações terem sido feitas à instituição, o posicionamento relativo às críticas feitas pelos profissionais não tinha sido enviado até a publicação da matéria.
Questionada sobre as exigências para quem deseja ser perito, a Polícia Civil se manifestou. A corporação informou que a escolaridade é a que consta no edital dos concursos. O último, realizado em 2021, cobrava, na área geral, habilitação mínima em nível superior (tecnológico, licenciatura e bacharelado), a ser comprovada mediante a entrega de cópia de diploma (apresentação do original) ou de certidão expedida por instituição de ensino reconhecida pelo Ministério da Educação.
O vencimento inicial para o cargo de perito criminal, nível I, grau A, é de R$ 10.028,30. Sobre novos certames, a instituição esclareceu que “continuará empreendendo esforços de interlocução com as instâncias competentes para possível realização”.
A Polícia Civil esclareceu ainda que “os concursos públicos que visam ao provimento de vagas para as carreiras policiais de delegado de polícia, médico-legista, perito criminal, escrivão de polícia e investigador de polícia foram devidamente homologados em junho deste ano”. Questionada sobre o que isso significa e se já existe publicação de edital, a instituição não respondeu.
O TEMPO também indagou sobre quais crimes os peritos atuam, quantos crimes foram analisados neste ano por cada profissional, quais as atividades desenvolvidas no Instituto de Criminalística de BH, se há previsão da construção do novo prédio, quando os futuros peritos vão começar a atuar e o que consta no kit DNA utilizado pelos peritos, no entanto os esclarecimentos não foram recebidos
Fonte: Vitor Fórneas, para Jornal O Tempo, em 3 de outubro de 2022. Disponível em https://www.otempo.com.br/cidades/sucateamento-da-pericia-de-mg-falta-de-peritos-e-de-kits-pra-dna-e-adoecimentos-1.2730881.